Crianças e adolescentes nordestinos seguem entre as maiores vítimas de violações no país. A região lidera casos de trabalho infantil, exploração sexual e mortes violentas
Como está a infância das crianças nordestinas? Nos livros, a infância é apresentada como tempo de brincar, aprender e sonhar. Mas, na realidade, para milhares de meninas e meninos do Nordeste, esse direito tem sido negado.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil apresentou redução em 2023 em todas as grandes regiões do país, mas com diferenças significativas entre elas. O Nordeste (4,8%) e o Centro-Oeste (4,8%) registraram proporções acima da média nacional.
Os estados de Piauí (8,7%), Bahia (6,6%) e Maranhão (6,3%) apresentam índices alarmantes, todos com percentuais muito superiores à média do país. Da região, apenas o Rio Grande do Norte (1,4%) apresentou resultado mais baixo, ficando bem abaixo da média nacional.
Em relação ao perfil, cerca de dois terços das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são meninos, a maioria está na faixa etária de 14 a 17 anos. É importante destacar que a legislação permite a aprendizagem profissional, mas muitos acabam em atividades informais ou irregulares, fora da proteção legal do trabalho.
Quando observados os recortes de cor e raça, o dado é ainda mais expressivo: em todos os anos analisados, cerca de dois em cada três trabalhadores infantis são pretos ou pardos (negros). No Norte e Nordeste, uma parte significativa dessas crianças e adolescentes atua em atividades de autoconsumo, como atividades rurais, que está associado à pobreza rural.
Além disso, os adolescentes que trabalham enfrentam piores indicadores educacionais: têm taxas mais altas de atraso escolar, dificuldades na alfabetização plena e menor frequência às aulas em comparação com os que não estão em situação de trabalho infantil, segundo o IBGE.
Mais de seis mil pontos de exploração sexual infantil foram identificados na região
Além do trabalho precoce, o Nordeste também lidera um dos indicadores mais graves de violação de direitos: o de pontos de exploração sexual infantil. De acordo com levantamento do Projeto Mapear – da Polícia Rodoviária Federal – entre 2023 e 2024 foram identificados mais de seis mil locais de exploração (6.532), segundo levantamentos oficiais. Esses pontos estão concentrados em postos de combustíveis, bares, restaurantes e áreas de parada nas estradas, onde meninas são aliciadas.
Os estados do Ceará (15%), Paraíba (8%) e Maranhão (6%) despontam com médias de pontos críticos acima da média nacional. O perfil nós já sabemos: meninas em vulnerabilidade social, com baixa escolaridade, vindas de periferias e áreas rurais em busca de condições melhores de vida.
A violência, muitas vezes invisível, acontece também dentro de casa.
Oito em cada dez violações contra crianças nordestinas acontecem no próprio lar, segundo dados do Disque 100.
No ranking de casos por estado do Nordeste, considerando o número proporcional por 100 mil habitantes, o Rio Grande do Norte aparece com o maior número de denúncias, seguido de Sergipe e, em terceiro lugar, Alagoas. O estado com menor número de denúncias proporcionais é o Maranhão com 125 casos a cada 100 mil habitantes.
Em 2024, o Nordeste registrou 6.541 denúncias de estupro de vulnerável. A Bahia é o estado com o maior número de denúncias da região, com 1.727 registros, seguido pela Paraíba, que contabilizou 1.092 casos. Os dados são da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, canal do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por meio do Disque 100.O Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que crianças e adolescentes negras são as mais expostas à violência. Em 2023, cerca de 88% das vítimas eram meninas, 55,2% eram negras e 61,6% delas tinham até 13 anos de idade.
Bahia é o estado que mais mata crianças e adolescentes no Brasil
O direito à infância também é atravessado pela violência armada. Segundo o Atlas da Violência 2025, a Bahia é o estado que mais mata crianças e adolescentes no país. O estado lidera os rankings nacionais de mortes violentas tanto de crianças na faixa etária de 5 a 14 anos quanto de adolescentes entre 15 e 19 anos.
Essa é uma realidade nacional, já que o homicídio é a principal causa de óbito de jovens entre 15 e 29 anos no Brasil. Em 2023, 34% das mortes de jovens nessa faixa etária foi por homicídios. O maior número absoluto foi na Bahia, com 3.892 mortes de jovens.
Quando analisada a taxa de homicídios por 100 mil jovens (15 a 29 anos) em 2023, destacam-se o Amapá (134,5) e a Bahia (113,7) com os indicadores mais elevados. A taxa baiana, por exemplo, representa doze vezes a de São Paulo (10,2), o estado mais populoso do país. Abaixo da Bahia, o ranking é seguido por Pernambuco (82,2), Alagoas (79,5) e Ceará (72,8).
No que tange à violência contra as crianças, o estado novamente apresentou um quadro alarmante: em 2023, a Bahia registrou 48 homicídios de crianças de 5 a 14 anos, o maior número do país nessa faixa etária.
A residência é o local mais comum de ocorrência da violência contra crianças e adolescentes. Essa estatística reflete a alta frequência da violência familiar como um fenômeno preocupante na sociedade.

A história do assassinato de Joel foi registrada no documentário “Menino Joel” , uma produção baiana do diretor italiano Max Gaggino
Em 2010, no bairro do Nordeste de Amaralina, em Salvador, o menino Joel, de apenas 10 anos, se preparava para dormir quando foi atingido na cabeça por um disparo durante uma operação policial. A corporação alegou confronto com suspeitos, mas testemunhas afirmaram que os agentes entraram atirando na comunidade.
Casos como o de Joel se repetem. No Piauí, a menina Débora Vitória, de apenas 6 anos, morreu após ser baleada por um policial que reagiu a um assalto. O caso aconteceu no bairro Ilhotas, Zona Sul de Teresina, em novembro de 2022. Débora estava com a mãe, Dayane, que sofre uma da tentativa de assalto. O PM, que estava em um bar, reagiu ao visualizar a ação, mas o tiro atingiu a criança, levando-a à morte. A mãe também foi atingida por um disparo, mas sobreviveu.
Tragédias como essas não são casos isolados, mas um retrato de um país que não protege suas crianças e jovens.
Caminhos para a proteção integral: Propostas do FPSPNE para crianças e adolescentes
Os altos índices de trabalho infantil, exploração sexual e violência letal expõem a face mais dura da desigualdade social e racial no país. A infância nordestina continua sendo a mais afetada por um sistema que nega direitos básicos e naturaliza a violação.
O Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste (FPSPNE) assume o compromisso de apontar caminhos concretos para a diminuição dos índices de violência e a proteção integral de crianças e adolescentes na região. Tais propostas, resultado de um amplo processo de debate e participação, foram construídas e sistematizadas no Caderno de Propostas elaborado durante a 2ª Conferência Popular de Segurança Pública do Nordeste.
As diretrizes do FPSPNE estão organizadas em diversos eixos e visam aprimorar a proteção social, a participação e a estrutura de amparo legal. Entre as principais ações propostas, destacam-se:
Proteção e Prevenção Comunitária e Social
- Realizar formações em espaços públicos da comunidade sobre temas essenciais como educação sexual, diversidade de gênero, gravidez na adolescência e redução de danos, mobilizando educadores populares, profissionais de saúde, psicólogos e assistentes sociais.
- Fortalecer e ampliar os CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) para atender crianças e adolescentes vítimas de violência, oferecendo apoio psicossocial e oportunidades educacionais.
Protagonismo e Participação Juvenil
- Garantir o protagonismo das crianças, adolescentes e jovens, criando espaços de diálogo em escolas, comunidades e órgãos públicos para a tomada de decisão sobre as políticas públicas. É fundamental assegurar a participação efetiva nos Conselhos Municipais e Estaduais dos Direitos de Crianças e Adolescentes e nos Conselhos da Juventude.
Estrutura, Legislação e Fluxos de Proteção
- Criar uma lei orgânica para o Conselho Tutelar, com o objetivo de definir aspectos cruciais como a composição, eleição, remuneração, formação, atribuições e garantias dos conselheiros tutelares, bem como os recursos necessários para o seu trabalho.
- Aprimorar os fluxos de acesso para as Políticas de Proteção à Criança e Adolescente, investindo em estratégias de busca ativa e no fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
Oportunidades e Fiscalização do Trabalho
- Regulamentar e ampliar os programas de aprendizagem nos estados, por meio de parcerias entre órgãos públicos, empresas e instituições educacionais, a fim de expandir as oportunidades de estágios remunerados e trabalho na condição de aprendiz.
- Garantir que o Ministério do Trabalho e o Ministério Público realizem fiscalizações rigorosas das cotas de aprendizagem em todas as empresas dos nove estados do Nordeste.
As propostas do FPSPNE buscam um modelo de segurança pública que seja preventivo, participativo e estruturado, priorizando o desenvolvimento pleno e a proteção dos direitos da infância e da juventude nordestina.
Com informações da Agência Tatu e Revista Afirmativa

